Sem representação significativa no Congresso, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) se especializou em judicializar decisões que, em teoria, deveriam ser questões exclusivas do Legislativo. O partido já acumula 50 ações no Supremo Tribunal Federal (STF). A mais recente foi o questionamento da decisão da Câmara dos Deputados para suspender a ação penal contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), que é réu por suposta tentativa de golpe de Estado em 2022. Essas ações do partido vêm atendendo aos interesses do governo e proporcinando ao STF cada vez mais oportunidades de deliberar sobre assuntos que caberiam exclusivamente aos parlamentares e exercer um papel reformista independente da vontade popular. O Psol conta com apenas 13 deputados federais, nenhum senador, e 23 deputados estaduais. Além disso, possui apenas 90 das mais de 5,3 mil prefeituras espalhadas pelo país. Atualmente, a sigla é presidida pela professora Paula Coradi. O caso Ramagem se soma a outras iniciativas do partido no Judiciário. Em 2015, o partido de Guilherme Boulos (Psol-SP) já buscou a Corte para tentar liberar o aborto. No ano passado, pediu a suspensão das emendas parlamentares, o que provocou tensões entre Legislativo e Judiciário.

Em julgamento nesta sexta-feira (9), os ministros Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin votaram para limitar a suspensão da ação contra Ramagem. Relator do caso, Moraes votou para impedir que outros réus do “núcleo 1” da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR), como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), se beneficiem da medida. O voto foi acompanhado pelos demais ministros da Primeira Turma da Corte – Flávio Dino, Luiz Fux e Cármen Lúcia.

A maioria dos mais de 50 processos do Psol está dividida entre Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). No caso do primeiro dispositivo, a ação visa questionar o Judiciário sobre a constitucionalidade de alguma lei aprovada no Legislativo. Já o segundo busca proteger os preceitos fundamentais da Constituição Federal.

Ações envenvolvendo questões ambientais exemplificam como o Psol atua no Supremo. Na ADI 6553, a sigla questiona a Lei 13.452/2017, que alterou os limites do Parque Nacional do Jamanxim, no Pará. Já na ADI 7794, o partido questiona a Lei Estadual 19.135/2024 do Ceará, que flexibiliza a pulverização aérea de agrotóxicos, incluindo drones. Na ADPF 1201, o Psol chega a alegar uma suposta ineficiência do estado de São Paulo em lidar com queimadas e outros problemas ambientais.

O partido não teria condições políticas nem ao menos de pautar debates sobre esses temas pelas vias normais do Congresso.

Para o cientista político Adriano Cerqueira, professor do Ibmec de Belo Horizonte, a relação entre o Psol e o Supremo Tribunal Federal evidencia um alinhamento político que se intensificou durante o governo Bolsonaro. Segundo ele, o partido tem utilizado o Judiciário como ferramenta para contestar decisões legítimas do Congresso Nacional, mesmo após ser derrotado no processo legislativo.

“Uma coisa é garantir o direito das minorias, outra é uma minoria vencida usar o recurso de mobilizar o Judiciário para tentar barrar decisões das quais ela perdeu”, afirma Cerqueira. Ele critica a postura assumida pelo STF, que, segundo ele, tem atuado politicamente e em sintonia com partidos de baixa representatividade. “O STF tem assumido nitidamente, até de forma declaradamente assumida, uma postura política, muitas vezes alinhada com esse partido muito pequeno”, disse.

Psol aposta no STF e acumula vitórias em ações sobre aborto e emendas

Diante da falta de apoio no Congresso Nacional para avançar com a descriminalização do aborto, o Psol tem apostado no Supremo Tribunal Federal (STF) como principal via para emplacar sua agenda. O movimento começou em 2017, quando o partido ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, em conjunto com o Instituto Anis, pedindo a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A proposta já havia sido apresentada dois anos antes na Câmara pelo então deputado Jean Wyllys (Psol-RJ), mas enfrentou resistência e foi travada.

A legislação brasileira estabelece que o aborto é crime em qualquer situação, mas há casos em que a realização não gera punição nem para a gestante, nem para a equipe médica responsável pelo procedimento. São as chamadas “escusas absolutórias”, motivos que excluem a pena de um determinado crime. No caso do aborto, o Código Penal brasileiro prevê que não haverá punição somente se o prosseguimento da gestação implicar em risco à vida da gestante e nos casos de gravidez resultante de estupro em que a mulher manifesta vontade de interromper a gestação. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) também considerou que o aborto em casos de anencefalia do bebê não deve ser passível de punição.

Apesar disso, o Psol tenta ampliar essas possibilidades via Judiciário. O julgamento da ADPF 442 chegou a ser iniciado no plenário virtual em 2023, quando a então ministra Rosa Weber, que era relatora do caso, votou a favor da descriminalização. No entanto, o processo foi interrompido após pedido de vista do presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, que já se manifestou publicamente a favor da medida, mas aguarda o momento “mais adequado” para retomar a votação.

Paralelamente, o partido tem acumulado vitórias em ações pontuais no STF. Em 2024, conseguiu suspender a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a realização da assistolia fetal — técnica que interrompe os batimentos cardíacos do feto — em abortos legais realizados após a 22ª semana. A decisão foi tomada de forma monocrática pelo ministro Alexandre de Moraes, após reunião com integrantes do Psol e do Instituto Anis. O referido instituto é uma ONG pró-aborto brasileira. Ele foi fundado em 1999 pela antropóloga e ativista pela legalização do aborto Debora Diniz.

Além da suspensão da norma, Moraes também proibiu a tramitação de processos judiciais contra médicos que realizaram o aborto nas três situações citadas anteriormente. O ministro ainda determinou que a prefeitura de São Paulo comprovasse a realização de abortos em gestações avançadas, sob pena de responsabilização de gestores hospitalares. Em resposta, a administração municipal informou que realizou uma “busca ativa” por grávidas com mais de 22 semanas para aplicar a decisão.

Em outro tema, em agosto do ano passado, a legenda também teve êxito ao pedir a suspensão das emendas parlamentares ao STF. Em solicitação enviada ao Supremo, o Psol pediu a anulação de quatro emendas constitucionais que obrigam a execução de emendas parlamentares ao Orçamento da União – conhecidas como emendas impositivas.

A alegação da sigla era de que as emendas violam os princípios da separação entre os Poderes, o pacto federativo e a democracia ao comprometerem a autonomia do Executivo na definição da política orçamentária. O pedido foi atendido pelo ministro Flávio Dino, atual relator do caso.

Alinhamento ideológico facilita ações do Psol no STF

Mas como um partido de baixa representatividade no Congresso consegue subverter a vontade dos demais partidos? Para o advogado constitucionalista André Marsiglia, o principal problema não é o fato de partidos recorrerem ao Supremo Tribunal Federal, mas sim a postura da Corte ao aceitar e julgar todas essas ações, especialmente as movidas por legendas de esquerda. Ele aponta que o STF poderia se abster de decidir sobre temas que são, por prerrogativa, do Legislativo, mas opta por uma atuação ativa, de viés progressista.

“O problema, portanto, está na ambição reformista do STF”, afirma Marsiglia. Segundo ele, há uma sintonia entre os ministros e os partidos que acionam o tribunal. “A afinidade ideológica de ministros com os partidos de esquerda que os acionam é decisiva”, diz.

Ainda segundo Marsiglia, essa atuação acaba por minar o trabalho da oposição no Parlamento: “O STF chega até mesmo a neutralizar, com seus julgamentos, a atividade parlamentar dos partidos de direita no Congresso ou dar governabilidade ao Executivo atual”.

Na visão do advogado constitucionalista Fábio Tavares, o Supremo tem sido instrumentalizado para rever votações legítimas, minando a autoridade do Legislativo e colocando em risco a confiança no Judiciário.

“Trata-se, com efeito, de uma distorção grave da lógica republicana de freios e contrapesos”, afirma Tavares. “O que se observa é a instrumentalização do STF como atalho jurisdicional para reverter, via decisão judicial, votações legítimas, com respaldo democrático, nas Casas do Parlamento.”

O constitucionalista critica o que chama de “mutação inconstitucional” do sistema de controle de constitucionalidade, ao permitir que partidos com representação mínima possam acionar a Corte para tentar modificar decisões políticas. “Essa prática afronta diretamente os princípios da separação dos Poderes, da soberania popular e da legalidade democrática”, diz.

Atuação judicial do Psol vai além do STF e mira gestões municipais
A atuação do Psol no Judiciário, especialmente em temas sensíveis como o aborto, não se restringe às ações movidas no Supremo Tribunal Federal. O partido tem adotado uma estratégia de judicialização em diferentes esferas do poder público, estendendo suas disputas jurídicas a tribunais estaduais e à administração municipal em diversas capitais brasileiras.

Em São Paulo, parlamentares estaduais do Psol entraram com uma ação contra a prefeitura da capital, comandada por Ricardo Nunes (MDB), exigindo que a gestão municipal arque com o pagamento de aproximadamente R$ 10 milhões em multas. A cobrança se refere a supostas recusas de unidades de saúde da rede municipal em realizar procedimentos de aborto nas três situações anteriormente mencionadas. A ação é parte de uma série de iniciativas do partido para pressionar pelo acesso ao aborto nos casos em que o Código Penal não prevê punição.

Outro exemplo dessa ofensiva ocorreu em Belo Horizonte. As vereadoras Iza Lourença e Cida Falabella, também do Psol, recorreram à Justiça para tentar anular uma lei municipal aprovada na Câmara da capital mineira. A norma determinava a divulgação, no Diário Oficial do Município e no portal da prefeitura, de dados sobre os abortos realizados na cidade, incluindo informações como a faixa etária da gestante, sua raça ou cor e o motivo do procedimento.

A justificativa da autora da lei era promover transparência sobre os números de abortos realizados na cidade, com o objetivo de embasar políticas públicas. Contudo, para o Psol, a medida violava a privacidade das pacientes e poderia alimentar estigmas e perseguições. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais acolheu o pedido das vereadoras e determinou a suspensão da norma.

A atuação do Psol também se fez presente em um caso de grande repercussão nacional, ocorrido em 2022, envolvendo uma menina de 11 anos vítima de estupro em Santa Catarina. À época, a juíza Joana Zimmer sugeriu a manutenção da gestação até que o feto tivesse maiores chances de sobrevivência fora do útero — a gravidez estava na 22ª semana. O partido levou o caso ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que decidiu instaurar um processo administrativo disciplinar contra a magistrada. Relembre o caso no editorial da Gazeta do Povo “Uma juíza punida por querer salvar vidas”.

 

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