Se o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir mesmo se antecipar ao Congresso na regulamentação das redes sociais – como tem sinalizado no julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet –, o Brasil pode se tornar um caso único no mundo, sendo o primeiro país em que o Judiciário teria tomado as rédeas do tema e aprovado por si próprio as regras para o controle do discurso nas redes sociais. Nem mesmo em regimes autoritários que já aprovaram leis contra o chamado “discurso de ódio”, como a Venezuela, essa dinâmica se verificou. Por lá, apesar de o Executivo exercer controle absoluto sobre o Legislativo, houve a cautela de preservar a aparência de respeito às atribuições formais dos poderes, com a aprovação da lei sendo conduzida pelo Congresso.

O STF tem sugerido que vai declarar inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil, que determina que plataformas só podem ser responsabilizadas por conteúdos postados por usuários caso descumpram uma ordem judicial de remoção. O tribunal também tem indicado que criará novas regras para o controle do discurso nas redes, com o objetivo de obrigar que as plataformas removam proativamente alguns tipos de conteúdo que os próprios ministros deverão especificar nos próximos dias.

Em democracias como Alemanha, Reino Unido e Austrália, regras do tipo também existem, mas foram aprovadas pelos Poderes Legislativos dos países. Os alemães foram pioneiros, promulgando em 2017 uma lei que inspirou outras regulamentações no mundo.

No Brasil, o Projeto de Lei 2630/2020 – apelidado de PL das Fake News ou da Censura – chegou a ser discutido por meses no Congresso, mas não avançou. Os ministros do STF, que alegam ver nas redes sociais uma ameaça às instituições democráticas, tem apelado ao ativismo judicial para preencher o que enxergam como uma lacuna na atuação do Legislativo.

A pressão da Corte por uma regulamentação mais rígida cresceu com eventos recentes, como a invasão ao STF em janeiro de 2023, usada para alimentar a narrativa de que as redes sociais são um campo fértil para discursos de ódio. Nos últimos dias, a revelação dos detalhes sobre uma suposta tentativa de golpe de Estado em 2022 reforçou essa narrativa.

Onda de regulação das redes começou na Alemanha em 2017 e inspirou países autoritários

Vários países já aprovaram ou discutiram leis para regulamentar o uso das redes sociais, mas nenhum deles via Judiciário. Nas democracias, o embate no parlamento entre representantes do povo de diferentes partidos serviu para derrubar ou ao menos suavizar o ímpeto de censura. No Brasil, o ativismo judicial deverá inviabilizar a moderação democrática das decisões tomadas.

Conforme relata o Instituto Sivis, think tank de promoção da cultura democrática no Brasil, a tendência global à regulação das redes começou na Alemanha, com a Lei de Fiscalização de Redes, conhecida como NetzDG, que está em vigor desde janeiro de 2018. A ideia alemã inspirou países com governos autoritários.

A NetzDG foi elaborada pelo Executivo alemão e aprovada pelo Bundestag, o parlamento do país, em outubro de 2017, após grande controvérsia. O documento institui o chamado “dever de cuidado”, estabelecendo que as plataformas digitais são obrigadas a remover conteúdos classificados como “manifestamente ilegais” em até 24 horas após notificação. Houve grande polêmica quanto ao uso de termos vagos para definir o que seria considerado ilegal, mas a lei passou mesmo assim.

A NetzDG já causou impasses sérios em relação à liberdade de expressão, como no caso de Mike Samuel Delberg, representante da comunidade judaica alemã, que teve sua conta no Facebook suspensa após publicar um vídeo que relatava um incidente de antissemitismo em Berlim. Delberg, que expôs os insultos antissemitas com o objetivo de denunciar um possível crime, sofreu suspensão porque a plataforma temia possíveis sanções previstas pela NetzDG a publicações que contenham demonstrações racistas ou xenófobas.

A Rússia, de acordo com Sivis, usou a NetzDG como inspiração para criar, em 2017, uma lei repleta de termos vagos que prevê punições severas a certos conteúdos publicados nas redes. Esse foi o primeiro passo de uma escalada de censura das redes no país, culminando em março de 2019 com leis que concederam a uma agência estatal poderes para bloquear conteúdos online considerados “não confiáveis”. Depois disso, outra legislação criminalizou o “desrespeito flagrante” ao Estado, ampliando o controle estatal sobre o discurso digital.

Após a invasão da Ucrânia em 2022, o governo russo endureceu ainda mais suas leis de censura. O Código Penal passou a prever até 15 anos de prisão para a divulgação de “informações falsas” sobre as Forças Armadas. Leis subsequentes estenderam essa blindagem contra críticas a outros órgãos estatais.

A Turquia também se inspirou na legislação alemã ao implementar sua Lei de Desinformação em 2020. A medida atribui às autoridades amplos poderes para decidir o que constitui “desinformação”. Um dos primeiros alvos da nova lei foi Kemal Kılıçdaroğlu, líder da oposição, acusado de disseminar fake news.

Na Venezuela, em 2017, o governo promulgou a “Lei Constitucional Contra o Ódio, pela Convivência Pacífica e a Tolerância”, com o alegado objetivo de “promover e garantir o reconhecimento da diversidade, da tolerância e do respeito recíproco, bem como prevenir e erradicar toda forma de ódio, desprezo, assédio, discriminação e violência”.

Embora essa lei venezuelana tenha um alcance mais geral do que o de regulação das redes, um de seus principais alvos são as plataformas digitais. O documento, aprovado pelo Congresso do país, prevê prisão de dez a vinte anos para quem, por qualquer meio, inclusive as redes sociais, “promova ou incite o ódio, a discriminação ou a violência”.

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