A Advocacia-Geral da União (AGU) quer ganhar poderes para acionar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para contestar o que considerar notícias falsas ou desinformação sobre programas do governo federal nas eleições. Se essa medida entrar em prática, em teoria, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderia tentar interferir já nas eleições municipais deste ano, levando ao TSE pedidos de censura contra o que considerar “desinformação” em eventuais críticas de candidatos locais a programas federais na campanha eleitoral.

Hoje somente partidos políticos ou pessoas diretamente envolvidas na eleição para determinado cargo têm a prerrogativa de acionar o TSE para analisar se uma afirmação é notícia falsa ou desinformação.

A AGU enviou um questionamento ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a possibilidade do órgão passar a ter também essa prerrogativa. O tribunal ainda não respondeu. Mas se aceitar, o governo federal pode entrar com esse tipo de processo em praticamente qualquer município.

Outra possível consequência é que as instâncias similares à AGU nos estados e municípios, chamadas de procuradorias, também movam ações eleitorais similares nos Tribunais Regionais Eleitorais. Tal cenário acarretaria uma possível sobrecarga da Justiça Eleitoral inviabilizando a tramitação dos processos com a urgência que é característica dessas ações.

Os especialistas ainda avaliam ser possível haver um desvio de finalidade da AGU que pode, inclusive, configurar o uso da máquina pública para fins eleitorais, gerando disparidade entre candidatos. Tal seria o cenário se, por exemplo, presidentes, governadores ou prefeitos utilizem os serviços de suas advocacias para questionar as propagandas eleitorais de adversários políticos com críticas às suas gestões e programas de governo.

Por seu lado, a Advocacia-Geral da União afirma que a consulta ao TSE foi feita tão somente para que o “tribunal esclareça se é da Justiça Eleitoral a competência para julgar ações que busquem preservar a integridade de política pública caso ela seja objeto de desinformação em propaganda eleitoral”.

Consultada sobre um possível desvio de função, a AGU afirma que sua “atribuição constitucional de representar judicial e extrajudicialmente a União” faz com que possa atuar nas ocasiões em que a “integridade de políticas públicas da União são ameaçadas por desinformação”.

O advogado e autor do livro “Instituições de direito eleitoral”, Adriano Soares da Costa, afirma que as questões propostas pela AGU demonstram uma tentativa clara do governo federal fazer uso da Justiça Eleitoral como órgão de censura. No seu entendimento, a alegada “desordem informacional” está sendo utilizada como artifício para estabelecer o controle do debate público e da propaganda eleitoral em benefício de candidaturas vinculadas ao grupo político que está no comando do governo federal.

“Há o risco de uso da máquina pública, por meio de assédio judicial, em benefício de candidaturas. “Desordem informacional” é um conceito vago, em que cabe tudo dentro. É aquilo que a interpretação subjetiva de alguém disser que é. Esse instrumento retórico transforma a Justiça Eleitoral em editora do debate político, dizendo o que é ou não é verdade, o que pode ou não pode chegar ao eleitor como informação”, afirma.

AGU não tem legitimidade para acionar Justiça Eleitoral

Um dos pontos considerados importantes caso seja aberto esse precedente, é a falta de legitimidade da AGU para acionar a Justiça Eleitoral. Alexandre Rollo especialista em Direito Eleitoral, mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito Eleitoral do TRE-SP, afirma que a Advocacia-Geral da União não está elencada entre os agentes que podem propor ações perante a Justiça Eleitoral.

A Lei das Eleições (lei no 905/1997), em seu artigo 96, diz que as reclamações ou representações relativas ao descumprimento das regras eleitorais “podem ser feitas por qualquer partido político, coligação ou candidato”. Em complementação, o artigo 22 da Lei Complementar LC 64/90 aponta que “qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral”.

Rollo afirma que, como está expresso nesses dispositivos, o eleitor, as pessoas jurídicas de direito privado e as pessoas jurídicas de direito público, dentre as quais se enquadra a Advocacia-Geral da União, não possuem legitimidade para acionar a Justiça Eleitoral.

Mestre em Direito Constitucional pela USP e especialista em Direito Eleitoral, Antonio Carlos de Freitas Jr também partilha dessa visão. De acordo com o jurista, em regra, a AGU não tem a capacidade processual de acionar a Justiça Eleitoral. “Quem pode acionar as ações judiciais eleitorais, quem tem legitimidade ativa e processual e até de consulta, são os participantes do processo eleitoral. No caso da AGU, ela representa a União Federal que não é partícipe de qualquer processo eleitoral, sob nenhuma possibilidade interpretativa”.

Em seu questionamento ao TSE, a própria AGU afirma que não tem legitimidade para propositura de ação eleitoral já que, como representante da União, não tem interesse nos resultados das eleições. À Gazeta do Povo, a Advocacia-Geral da União afirmou que, mesmo assim, está habilitada a fazer consultas ao TSE.

Para tanto, citou o Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65), segundo o qual qualquer autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político podem submeter consultas à Corte Eleitoral. No caso específico da consulta em questão, ela foi endereçada ao TSE pelo procurador-geral da União, Marcelo Eugênio Feitosa Almeida, que se encaixa nos requisitos do Código.

Ação da AGU para combater fake news nas eleições pode gerar assimetrias entre candidaturas

A AGU também afirmou à Gazeta do Povo que “não tem, enquanto ente público, interesse jurídico no resultado da eleição, ou seja, se será eleito candidato A ou B”. No entanto, os especialistas destacam que o órgão atua em defesa da União e, portanto, do Poder Executivo. Os representantes máximos do Executivo, seja na figura do presidente da República, de governadores ou prefeitos, por sua vez, possuem filiação e interesses partidários.

Na prática, se AGU acionar a Justiça Eleitoral contra “desinformações” vinculadas ao governo e seus programas, tal prática pode configurar abuso do poder político e desvio de finalidade. O entendimento é de que a advocacia pública estaria sendo utilizada para defender interesses eleitorais, sob o pretexto de combater fake news. Nesse sentido, Antonio Carlos afirma o uso da máquina pública para defender programas e ações do governo durante as eleições pode violar um princípio básico do Direito Eleitoral que é a paridade entre os candidatos.

Ou seja, com a atual presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), os candidatos petistas ou de suas coalizões poderiam se beneficiar quando a Advocacia-Geral da União acionasse a Justiça Eleitoral em razão de supostas “desinformações” a respeito dos projetos do governo. Não é segredo que, no período eleitoral, os partidos e seus candidatos se valem de iniciativas de seus governos e daqueles de correligionários para dar credibilidade a suas próprias candidaturas e propostas.

Por outro lado, os candidatos oposicionistas aos governantes e seus partidos tradicionalmente criticam as ações de sua gestão, mesmo que já não estejam mais no poder. É uma estratégia amplamente utilizada para minar a credibilidade das siglas e candidatos, principalmente se estiverem no poder. Por exemplo, conforme apurado pela Gazeta do Povo, mesmo após o término das eleições, o próprio Lula seguiu se valendo dessa estratégia em relação ao ex-presidente Jair Bolsonaro.

Na maioria de suas lives oficiais semanais o presidente repetiu críticas abertas e, muitas vezes, infundadas sobre a gestão de Bolsonaro. O atual mandatário afirmou que o governo anterior só propagava o ódio e que havia destruído o Brasil, sem comprovar essas alegações, propagadas também durante sua campanha. Se nas eleições de 2022 a AGU tivesse os poderes que agora pleiteia ao TSE, poderia ter entrado contra o PT alegando que suas propagandas políticas continham desinformação a respeito da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seus programas.

Legitimação da AGU para acionar TSE para combater fake news pode gerar enxurrada de processos

Caso a AGU de fato possa acionar o TSE para combater fake news em propagandas eleitorais, outro possível desdobramento é que a Justiça Eleitoral receba uma enxurrada de ações. Alexandre Rollo comenta que estados e municípios também possuem advogados públicos, semelhantes à AGU, mas com o nome de Procuradorias. Ele afirma que, como uma consequência lógica, as procuradorias estaduais e municipais também poderiam acionar a Justiça Eleitoral.

Antonio Carlos também vislumbra essa consequência e ainda avalia que, se aberto pela AGU, esse precedente pode abrir as “porteiras” da Justiça Eleitoral. Segundo ele, a princípio, qualquer agente público que tenha sua atuação criticada em uma propaganda eleitoral seria estimulado a acionar as Zonas ou Tribunais Eleitorais, em qualquer instância, para se defender.

Uma das principais características das ações da Justiça Eleitoral é que sejam julgadas com agilidade, devido ao curto período em que é permitido veicular as propagandas eleitorais. Um aumento substantivo no número de ações pode levar à demora nos julgamentos e, portanto, a que as decisões não sejam proferidas em tempo para que os partidos realizem as correções necessárias.

A legislação brasileira não prevê crime de desinformação e fake news
Outro ponto destacado sobre esse possível precedente para a AGU é que a produção ou disseminação de desinformações ou fake news não constam de forma clara na normatização jurídica brasileira. O advogado e especialista em Direito Eleitoral Richard Campanari afirma que o termo desinformação é vago e abrangente, e que, portanto, pode ser interpretado de diversas maneiras.

Dessa forma, a consulta feita sugere que nos casos em que a AGU entenda haver “desinformação ou desordem informacional, poderá mover ações eleitorais, permitindo ao TSE atuar como “árbitro da verdade”. Richard explica que ações contra a desinformação ainda carecem de normatização jurídica clara, mas que “estão sendo tratadas na Justiça Eleitoral de maneira extralegal, sem a participação do Congresso Nacional no debate”.

Alexandre Rollo não concorda que AGU possa acionar a Justiça Eleitoral e destaca que esse debate deveria ser encabeçado pelo Parlamento. O jurista entende que a discussão sobre os danos materiais e morais decorrentes de desinformação, ainda que seja veiculada em propaganda eleitoral, “pode e deve ser travada perante a Justiça Comum, estadual ou federal, não sendo a Justiça Eleitoral o foro adequado para que a União, os Estados e os Municípios formulem tais questionamentos”.

Fonte: Gazeta do Povo

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